Na vida de qualquer pessoa, sempre existem problemas e conflitos, e quase todos podem ser atribuídos à escassez de recursos. Como a maioria desses recursos vem de outras pessoas, esses problemas então, têm origem interpessoal ou na comunidade. Para a maioria desses problemas, podemos usar diversas estratégias para obter os recursos ou simplesmente desistir do recurso específico.

Sempre houveram também problemas mais graves também, os quais as pessoas simplesmente não conseguem enfrentar sozinhas. Nas comunidades tradicionais baseadas em parentesco, havia parentes e outros membros da comunidade que apoiavam a pessoa a superar esses problemas mais graves.

Nos velhos tempos, para todos esses problemas, fossem eles pequenos ou graves, as pessoas podiam observar os contextos óbvios e salientes que conduziram ao problema: seca, inundações, pragas, invasores ou os próprios membros da comunidade. Era possível claramente saber onde estava o problema.

No caso de problemas mais graves e sem solução, as pessoas envolvidas poderiam simplesmente desistir, abandonar qualquer tentativa de resolver o problema. Mesmo nesses casos, as comunidades baseadas em parentesco ainda apoiavam essas pessoas ou, no pior dos casos, elas poderiam tentar uma vida nova em algum outro lugar.

Na modernidade, porém, tudo isso muda. Desde, aproximadamente o começo dos 1800s, as pessoas começaram a viver em condições sociais totalmente diferentes de anteriormente. A partir desse período, ao invés de lidar com parentes e membros da comunidade, elas começaram a interagir predominantemente com estranhos, os quais, apesar de não terem compromissos ou responsabilidades uns com os outros, se tornaram a principal forma de obter recursos, por meio de atividades que têm pouco controle e que não permitem manter o produto do seu trabalho. As pessoas passam a obter dinheiro para obter seus recursos, que por sua vez, são controlados por estranhos. Sendo assim, as atividades que as pessoas se envolvem, em grande parte, passam a ser controladas por pessoas que não se conhecem intimamente, não têm importância, compromisso ou responsabilidade uma para com as outras. As relações entre as pessoas, na maior parte, são apenas relações contratuais e, muitas vezes, invisíveis e abstratas.

Por volta dessa mesma época, as pessoas começara a sentir pressões, estresses, angústias e problemas que foram moldados em contextos por outras pessoas que elas não podiam ver e que poderiam nem ser reais (qualquer semelhança com a noção de “fantasmagórico” não é mera semelhança). Aproximadamente em 1900, sociólogos começaram a descrever essas novas pressões moldadas pela sociedade moderna como “outros generalizados”: pressões sociais sem uma forma clara, impessoais e abstratos que passam a controlar, em grande parte, o comportamento das pessoas. Na mesma época, vemos o surgimento da psicologia e psiquiatria, como áreas que passam a existir para lidar com pessoas com problemas e sofrimentos para os quais não havia contextos óbvios e salientes. Esses problemas e sofrimentos passam a ser concebidos como originados dentro das pessoas por problemas cerebrais ou psicológicos.

Nesse contexto, surge a saúde e doença mental. Os problemas de saúde mental, são, na verdade, apenas extensões de comportamentos e modos de vida resultantes de conflitos em torno de recursos e pessoas, mas a expressão é inventada para endereçar exclusivamente problemas e sofrimentos na sociedade moderna em que não existe um contexto facilmente observável e identificável para se lidar, apenas “outros generalizados”. A psicologia e a psiquiatria nascem como áreas que lidam com esses problemas criados pela modernidade, e o capitalismo e burocracias que as caracterizam.

Uma mudança histórica é que com a modernidade, quase todas as pessoas passam a exibir comportamentos e sofrimentos sintomáticos que são denominados de “depressão generalizada” e “ansiedade generalizada”, resultantes das pressões sem forma e estresses da natureza das relações sociais tão predominantes com estranhos. Não é que as pessoas vivendo na modernidade “tenham” depressão ou ansiedade; elas estão vivendo em contextos modernos que são indutores de depressão e ansiedade. As pessoas são levadas a pensar nos conflitos não facilmente observáveis como existindo “dentro” delas, pois esses conflitos vêm de contextos generalizados do mundo capitalista moderno com sua predominância de relações com estranhos; as origens de pressões e estresses sentidas por todos não são observadas de maneira concreta — ao invés disso, elas são atribuídas a algo interno ou à essência da pessoa.

Os problemas de “saúde mental” surgem, então, como um fenômeno recentemente nomeado, decorrentes de enormes mudanças nas relações sociais causadas por massivas mudanças no contexto econômica da modernidade. Esses problemas parecem diferentes de outros problemas da vida mais concretos apenas porque surgem de contextos espalhados por uma sociedade inteira de estranhos trabalhando juntos, mas que não têm nenhum compromisso ou responsabilidade um para com o outro. Esses contextos desadaptativos, por não poderem ser vistos, foram atribuídos e relegados à problemas “mentais”. No entanto, as pessoas não “têm” doenças mentais: as pessoas estão vivendo em ambientes que não apoiam comportamentos saudáveis. Não é a mente das pessoas que são nocivas, mas seus ambientes.

As doenças mentais não foram descobertas pela psicologia e psiquiatria, mas fabricadas por mudanças gigantescas nas relações sociais desencadeadas pelas mudanças econômicas causadas pela revolução industrial. A revolução industrial não apenas mudou a forma de trabalharmos, mas principalmente de nos relacionarmos uns com os outros. Talvez, o principal produto da revolução industrial (e de todo o modo de viver que veio como consequência dela) não seja os bens e serviços que ela permite que as empresas ofereçam, mas o adoecimento da sociedade como um todo.

(baseado em grande parte no livro How to Rethink Mental Illness: The Human Contexts Behind the Labels de Bernard Guerin)

“Portanto, precisamos deixar claro que o que chamamos de saúde mental nesta era moderna é novo e restrito, e decorre explícita e diretamente das tentativas das pessoas de lidar com as mudanças massivas nas relações sociais e na distribuição de recursos (economia), e de ter que fazer isso sem muita orientação, porque nunca tentamos isso antes na história. Os sistemas capitalista e burocrático também significam que grande parte da vida não podemos entender e nunca entenderemos porque é abstrato e generalizado. E assim todos nós estamos tentando desesperadamente lidar com situações da vida que não só têm pouca história na qual as pessoas possam ter aprendido algumas boas soluções, mas para as quais não há respostas reais de qualquer maneira, exceto mudar os sistemas maiores, o que é improvável que aconteça tão em breve . E as famílias não podem realmente nos ajudar mais como antes. Este é o contexto real da saúde mental na modernidade e o DSM não está errado, mas é apenas um pequeno band-aid em tudo isso (Smail, 2005).” — Bernard Guerin

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