Autoajuda

Como parte da cultura terapêutica neoliberal, a autoajuda busca uma “autocorreção” do indivíduo como solução para seus problemas e, principalmente como forma de perseguir um ideal de vida (na maioria das vezes, irreal) normativo, nunca questionado, e consequentemente, desviando a atenção das condições sociais que causam os problemas.

A literatura de autoajuda teve, pelo menos, 4 períodos a partir do século passado. Em todos esses períodos, os livros e discursos de autoajuda refletem a ideologia hegemônica e o senso comum da época (Papalini, 2010):

  • 1930-1950: Surgimento.
    • Tema principal: trabalho;
    • Objetivos: ensinar técnicas para um objetivo concreto;
    • Características dos textos: manuais de vendas, publicações abertas ao público em geral.
  • 1950-1970: Rebelião.
    • Tema principal: interioridade;
    • Objetivos: estimular o desenvolvimento pessoal, a autoconfiança e o pensamento positivo.
    • Características dos textos: livros espirituais com ensinamentos de mestres orientais.
  • 1970-1990: Redirecionamento.
    • Tema principal: inteligência, trabalho;
    • Objetivos: aplicar habilidades pessoais ao trabalho; desenvolver capacidades mentais latentes;
    • Características dos textos: manuais de gerenciamento e de autoprogramação.
  • 1990- : Expansão.
    • Tema principal: a vida cotidiana em todas as suas áreas; doenças subjetivas como estresse, fobias e ansiedade.
    • Objetivos: curar os sintomas de desconforto subjetivo, melhorar a vida diária;
    • Características dos textos: biografias e autobiografias focadas em questões “espirituais”.

Não coincidentemente, a fase de expansão, o crescimento do discurso de autoajuda acompanha a globalização e o neoliberalismo, com a crescente responsabilização do bem-estar ou sofrimento, sucesso ou fracasso unicamente ao mérito (ou demérito) do próprio indivíduo (Papalini, 2013). O neoliberalismo e a autorresponsabilização fornecida pela autoajuda, dessa forma, se retroalimentam, com a ideologia da autocorreção subordinada à economia neoliberal e, ao mesmo tempo, cegando os indivíduos de outros arranjos econômicos alternativos.

A inquietação com o si mesmo e com as condições sociais (estimulada por uma variedade de terapias alternativas radicais e pela ação social, comunitária e ativismo) não é promovida pela autoajuda pois sua função é a de adaptar o indivíduo ao mundo e não de corrigir as estruturas sociais injustas que causam as situações ruins na vida dos indivíduos (Guerin, 2021). Em termos de ação social e mobilização coletiva, o discurso da autoajuda tem um efeito desarticulador (Papalini, 2013).

Vale ressaltar, no entanto, que a autorresponsabilização fomentada pelos discursos de autoajuda neoliberais também reflete, de forma geral, o modelo biomédico herdado pela psicoterapia e psiquiatria convencional, que postulam entidades fictícias internas (transtornos psiquiátricos, doenças mentais, transtornos psicológicos, psicopatologias – a crença de que existe algo de errado no indivíduo) como causas do sofrimento emocional. A autorresponsabilização acaba sendo a conclusão lógica do modelo biomédico, intensificado pelo neoliberalismo, na medida em que agora, até mesmo as causas inventadas para o bem-estar ou sofrimento emocional do indivíduo são de responsabilidade dele mesmo (se existe algo de errado no indivíduo, ele deve corrigir esse erro, se consertando), privatizando até mesmo os problemas sociais.

Nesse contexto, os discursos de autoajuda refletem valores individualistas (alimentados, em parte, por terapias que indiretamente, também seguem uma agenda neoliberal), como o de autocuidado, autocompaixão, amor próprio, entre tantas outras práticas que isolam o indivíduo do mundo social ao seu redor, dando um alívio no curto prazo, mas aumentando o sofrimento emocional no longo prazo. Além da promoção de toda bondade e cuidado somente para consigo mesmo, existe também o incentivo de uma pseudoautenticidade: “ser você mesmo”, “ser o seu verdadeiro eu”, “sentir-se orgulhoso de si mesmo”, slogans característicos da autoajuda neoliberal, que embora pareçam afirmações de singularidades e subjetividades pessoais, apontam apenas para um modelo uniforme, homogêneo e normativo da vida (Papalini, 2010).

Fica óbvio o papel do discurso da autoajuda na ideologia neoliberal, o de mascarar as causas do sofrimento: o ocultamento das fontes de dor, os nomes errôneos dos problemas e a atribuição de suas origens e manutenção ao próprio indivíduo em sofrimento ou à fatalidade ou às leis da natureza.

No entanto, é interessante observar que até mesmo os problemas emocionais são problemas sociais: os “temas” das emoções são predominantemente sociais (Ekman, 2007), os problemas emocionais afligem uma ampla gama da população, os problemas emocionais surgem de interações sociais e têm consequências sociais e, dessa forma, são originados ou mantidos por arranjos sociais (Bruhn e Rebach, 2007).

Se a autoajuda depende da autorresponsabilização e do modelo biomédico, a ajuda mútua vai na direção oposta: do social.

Ajuda mútua

David Smail, um psicólogo clínico britânico, que propôs uma explicação materialista social para o sofrimento psicológico. em diversos livros alertou sobre os perigos do individualismo e, consequentemente do isolamento social:

“O poder é uma aquisição social, não uma propriedade individual. O indivíduo isolado, desenraizado do contexto social, não só não possui poderes significativos, mas seria irreconhecível como ser humano. A autonomia com que nos creditamos é uma ilusão inteiramente dependente do comentário irrefletido que geramos a partir do eu-como-centro e que é reforçado por uma série de interesses em cujo benefício funciona.”

(Smail, 2005)

“Aqueles que realmente estão isolados são as pessoas na base da pirâmide de poder, tão despojados de qualquer tipo de poder institucional ou socialmente compartilhado que são reduzidos, em última análise, aos poderes totalmente proximais proporcionados por sua mera existência como indivíduos corporificados.”

(Smail, 1993)

“Quanto mais ‘privadas’ e ‘individuais’ as pessoas se tornam, mais desligadas elas ficarão da possibilidade de adquirir poder associativo.”

(Smail, 1993)

Em outras palavras, quanto mais nos isolamos, quanto mais nos ensimesmamos, mais impotentes nos tornamos. A autoajuda neoliberal como um todo (autocompaixão, autocuidado, autoestima, amor próprio), funciona como uma droga: 1) dá um alívio temporário por escapar de uma realidade opressiva; 2) o escape deixa intocado os arranjos sociais que originam e mantem o sofrimento o qual o indivíduo busca escapar.

O apoio mútuo ou ajuda mútua é um princípio da autogestão que valoriza a troca voluntária e recíproca de recursos. Embora seja um princípio da autogestão, a ajuda mútua sempre foi “natural” para humanidade desde os tempos ancestrais, já que é uma espécie extremamente social. Jonathan Haidt, psicólogo social que se especializou nas áreas da psicologia da moralidade e das emoções morais, tem uma teoria do intuicionismo social (nossos julgamentos morais seriam tomados com base em nossas intuições e somente depois racionalizadas) que afirma que os seres humanos tem 5 pilares de intuições morais: cuidado, justiça / reciprocidade, lealdade ao grupo, respeito à autoridade e pureza / santidade. A ajuda mútua se sustenta nesses pilares morais. Afinal, como afirmou David Smail (ele de novo):

“A moralidade surge através da experiência de uma humanidade comum e sua afirmação diante do poder. A moralidade não é uma questão individual, mas social; ela faz exigências sobre nós que vão além de nossas vidas finitas e individuais. Trata-se de resistir às forças que buscam conduzir divisões entre nós para que alguns possam se sentir e alegar ser mais humanos do que outros.

Nossa humanidade comum repousa sobre nossa incorporação comum. Todos nós somos feitos exatamente da mesma maneira. Todos nós sofremos da mesma forma. A maioria dos empreendimentos imorais procuram de uma forma ou de outra negar esta verdade e justificar o maior sofrimento dos oprimidos ou explorados com base neles serem ‘diferentes’ de alguma forma – fisicamente, racialmente, psicologicamente, geneticamente e assim por diante.

A imoralidade absoluta e autoconsciente, por outro lado, faz uso de seu conhecimento da nossa incorporação comum para infligir o máximo de dor e ameaça: o torturador faz aos outros o que não faria a si mesmo, e o terrorista, escolhendo vítimas ao acaso, reconhece implicitamente a equivalência de todas as pessoas.

A história do mundo ‘civilizado’ é aquela em que minorias poderosas buscaram (com cada vez mais sucesso) impor e explorar condições de escravidão sobre uma maioria empobrecida. Este é necessariamente sempre um empreendimento imoral, pois por suas ações, nega a continuidade da humanidade entre escravo e mestre, enquanto procura ideologicamente obscurecer essa negação.”

Smail, 2005

Isolados, somos impotentes, mas juntos somos poderosos. Poderosos até demais, a ponto de desde o surgimento de reis, imperadores, presidentes, CEOs e outras figuras que exercem a dominação, opressão e poder sobre os outros sempre terem tentado utilizar a estratégia de “dividir para conquistar”. Essa parece ser a estratégia do neoliberalismo como um todo.

Para sairmos dessa, precisamos fazer isso juntos. A alternativa à autoajuda é a ajuda mútua. A solução para o isolamento é a organização social. A solução para a desumanização é a moralidade. Como afirmou Malatesta muito tempo antes quase que parecendo uma inspiração para David Smail :

“Nós já o repetimos: sem organização, livre ou imposta, não pode existir sociedade; sem organização consciente e desejada, não pode haver nem liberdade, nem garantia de que os interesses daqueles que vivem em sociedade sejam respeitados. E quem não se organiza, quem não procura a cooperação dos outros e não oferece a sua, em condições de reciprocidade e solidariedade, põe-se necessariamente em estado de inferioridade e permanece uma engrenagem inconsciente no mecanismo social que outros acionam a seu modo, e em sua vantagem.
(…)
nas pequenas como nas grandes sociedades, excetuando a força brutal, a qual não nos diz respeito no caso em questão, a origem e a justificativa da autoridade residem na desorganização social. (…) tudo vem sempre de nós: quanto menos organizados estávamos, mais nos encontrávamos sob a dependência de certos indivíduos.”

Malatesta, 2015

Apenas deixando claro: sim, existem momentos em que é preciso cultivar o autocuidado, autocompaixão, amor próprio e outras práticas voltadas para si mesmo (principalmente quando não temos outra opção e as nossas necessidades só podem ser atendidas por nós mesmos). Mas será que não estamos exagerando na dose desse “tratamento”? Será que não deveríamos cultivar a ajuda mútua, a solidariedade, o cuidado com o outro? Quanto mais neoliberalismo, mais autoajuda e menos ajuda mútua. Quanto mais ajuda mútua, menos autoajuda e neoliberalismo.

Referências bibliográficas:

  • Libros de autoayuda: Biblioterapia para la felicidad (Vanina Andrea Papalini, 2010)
  • Recetas para sobrevivir a las exigencias del neocapitalismo – O de cómo la autoayuda se volvió parte de nuestro sentido común (Vanina Andrea Papalini, 2013)
  • Turning Mental Health into Social Action (Bernard Guerin, 2021)
  • Sociological Practice: Intervention and Social Change (John G. Bruhn e Howard M. Rebach, 2007)
  • Emotions Revealed: Recognizing Faces and Feelings to Improve Communication and Emotional (Paul Ekman, 2007)
  • The Origins of Unhappiness: A New Understanding of Personal Distress (David Smail, 1993)
  • Power, Responsibility and Freedom (David Smail, 2005)
  • Escritos revolucionários (Errico Malatesta e Plínio Coêlho, 2015)

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