Os boatos sobre a nossa irracionalidade foram desmedidamente exagerados.
Na última década, uma das áreas que ficou popular foi a economia comportamental, uma mistura de pesquisas da psicologia com alguns pressupostos da economia. Talvez você já tenha lido alguns livros da área, que é bem interessante, mas dissemina uma noção da natureza humana não tão interessante: os seres humanos são irracionais.
O que significa irracionalidade nesse discurso? Consiste na diferença entre o comportamento maximizador de ganhos do “homo economicus” (um agente fictício completamente racional, semelhante à figura do Spock do Jornada das Estrelas, mas mais egoísta, individualista e sem uma compreensão das emoções e da vida social) e o comportamento exibido por seres humanos reais em pesquisas (geralmente em contextos artificiais, como laboratórios).
Desse ponto de vista:
Irracionalidade = Comportamento do homo economicus – Comportamento humano real
Vários problemas podem ser encontrados aí. Analisando criticamente, o erro não está no comportamento das pessoas, mas nas premissas e conclusões ideológicas do modelo.
1) O argumento de que o ser humano é irracional parte da falsa premissa de que o homo economicus é o parâmetro de comparação ideal, chegando à conclusão de que o ser humano é uma espécie de homo simpson, com o viés cognitivo cumprindo o papel do novo pecado original da humanidade.
2) A irracionalidade pregada pela economia comportamental negligencia a perspectiva ecológica / contextual / sistêmica do comportamento humano.
3) O homo economicus como parâmetro de comparação ideal afirma, de forma cínica mas consistente com a ideologia neoliberal, que o ser humano deveria ser egoísta. Qualquer forma de altruísmo ou solidariedade seria uma irracionalidade.
4) A conclusão da irracionalidade serve como premissa de que você não sabe o que é melhor para você mesmo, por isso outras pessoas (especialistas, autoridades, representantes) deveriam tomar decisões por você.
Analisando construtivamente e a partir de uma perspectiva científica:
1) A diferença entre o comportamento do homo economicus e o comportamento humano real não se deve à uma falha de projeto, pecado original ou irracionalidade do ser humano, mas à uma falha do modelo neoliberal do que significa ser racional: “A irracionalidade geralmente está na mente do observador, não na mente do observado” (Russel Ackoff).
2) Da mesma forma que postular doenças mentais como causa do sofrimento emocional, postular uma irracionalidade humana satisfaz superficialmente a curiosidade sobre esses fenômenos, mas a custo de ser distraído de suas verdadeiras causas por não ir atrás do seu contexto material e social.
3) A irracionalidade humana, assim como a loucura ou o que é chamado de disfunção (cognitiva, emocional, comportamental) é apenas o reflexo de uma falta de entendimento dos motivos pelos quais as pessoas fazem o que fazem:
“‘Não agir funcionalmente’ como visto no DSM é o equivalente a ‘ser irracional’, onde ‘funcional’ hoje em dia significa um estilo de vida ocidental ‘normal’ com um emprego e uma família pequena e obedecendo a princípios econômicos racionais.”
Bernard Guerin
“Esses e outros experimentos semelhantes [de economia comportamental] são frequentemente citados como evidência de que os seres humanos não agem de forma racional para maximizar o ganho pessoal da maneira que os economistas costumam assumir. O motivo pelo qual não o fazemos é porque nossas motivações são mais fundamentalmente sociais do que isso e se desenvolveram para servir à harmonia social. Por meio da seleção social, a psicologia humana foi aprimorada para buscar a aprovação de outras pessoas.”
Kate Pickett e Richard G. Wilkinson (The Inner Level: How More Equal Societies Reduce Stress, Restore Sanity and Improve Everyone’s Well-Being)
4) Somos seres extremamente sociais. O modelo da irracionalidade humana neoliberal não leva em consideração nossas motivações extremamente sociais. Não existem comportamentos irracionais: as pessoas têm boas razões sociais e materiais para fazerem o que fazem; o que existem são comportamentos ou decisões resultantes de outros contextos culturais e sociais do que os motivos levados em consideração pelo neoliberalismo: o ganho pessoal.
“O oposto da racionalidade não é a loucura, mas a sociabilidade.”
Bernard Guerin