O modelo biomédico na psicoterapia

A psicologia clínica surgiu em um contexto histórico, onde por um mero acidente histórico, acabou herdando o que é chamado de “modelo biomédico”. Contextualizando um pouco…

Com a revolução industrial, as pessoas tiveram que deixar de se relacionar tão frequentemente quanto antes em comunidades baseadas em parentesco, onde tinham relacionamentos íntimos e com quem se importavam (pro bem ou pro mal), para se relacionar cada vez mais com estranhos que não se importavam entre si e cujo único vínculo era contratual. Aproximadamente nesse período, as pessoas começaram a relatar pressões, estresses, angústias que não sabiam dizer daonde vinham, uma espécie de ansiedade e depressão generalizada, que a sociologia chamou de o “outro generalizado”. Nesse contexto, surgem a psiquiatria e a psicologia para entender e “tratar” dessas novas “doenças mentais”. E nesse contexto, onde as causas e contextos desses sofrimentos emocionais não eram tão óbvias, essas disciplinas começaram a criar explicações fictícias, como psicopatologias / doenças mentais (que tinham por trás, alguma causa neurológica ainda não encontrada, mas presumida).

As suposições desse modelo biomédico para os objetivos da terapia são:

  • Os indivíduos são independentes entre si, autônomos e autossuficientes;
  • Doenças causam problemas de “saúde mental”;
  • Existe uma disfunção “interna”;
  • Não é possível observar diretamente esta disfunção, então a opinião de um especialista é necessária.

As implicações dessas suposições para as práticas terapêuticas são:

  • A necessidade de consertar o indivíduo;
  • Drogas tendo o papel de curar a doença;
  • Existe uma necessidade da pessoa falar sobre seus problemas “internos” porque estes não são observáveis;
  • O profissional de saúde mental precisa descobrir o que há de errado com a pessoa, por isso a necessidade do diálogo, para esclarecer e obter mais conversas “internas” da pessoa;
  • O local para o atendimento da pessoa é a clínica;
  • A “cura pela fala”.

Além do contexto histórico, existe o contexto econômico, o capitalismo e sua versão dele em anabolizantes: o neoliberalismo. O neoliberalismo é um projeto político, ideológico e econômico, desenvolvido nas 2 últimas décadas do século 20 (coincidentemente, oposto às tendências democratizantes que ocorreram no Brasil com a queda da ditadura militar a a ascensão de diversos movimentos populares), que busca reestruturar radicalmente a sociedade por meio do desmantelamento dos sistemas de bem-estar social e da promoção de políticas que transferem cada vez mais a riqueza social e o poder político para as corporações e os ricos às custas da maioria da população. O neoliberalismo não minimiza apenas o papel do Estado, mas também coopta, distorce e reduz as noções de política, democracia, sociedade civil, cidadania e solidariedade, restringindo não apenas o espaço desses conceitos, mas também seus participantes, agenda e campo de ação.

O contexto neoliberal faz a terapia assumir algumas suposições como objetivos:

  • Um problema precisa ser consertado (o indivíduo precisa voltar a produzir, consumir e não sofrer);
  • Encontrar o problema e usar soluções padronizadas para tratar o indivíduo – a busca por tratamentos empiricamente sustentados (ESTs Empirically Sustained Treatment) e seu uso na Prática Baseada em Evidências;
  • Produzir um indivíduo funcional e produtivo;
  • Assumir uma função normativa.

As implicações dessas suposições para as práticas terapêuticas são:

  • Documentação e categorizações (como o DSM, CID) usada para fins administrativos e para aprovação da terapia por planos de saúde;
  • Sessões de 50 minutos realizadas profissionalmente em um consultório;
  • A fala para construir uma categorização da doença (contida no DSM, CID);
  • Sucesso definido em termos de normas sociais (eliminação de “sintomas” e o retorno à normalidade).

“Há algo de podre no reino da Dinamarca”

Porém, ao longo das últimas décadas (na verdade, quase metade da história da psicologia), cada vez mais o modelo biomédico não se sustentou cientificamente. Ao invés disso, aos poucos foi surgindo um modelo ecológico / contextual / sistêmico que afirma basicamente que o comportamento e sofrimento humano não ocorrem no vácuo e que os contextos deles são predominantemente sociais. Nesse modelo, doenças e psicopatologias são descartadas; ao invés disso, situações ruins na vida geram o sofrimento humano e o contexto molda o comportamento humano.

Assim, surgem abordagens alternativas, que abandonam a pergunta do modelo biomédico “O que tem de errado com você?” e adotam a pergunta “O que aconteceu com você?”. O sofrimento humano deixa de ser visto como sinais e sintomas para ser encarado como respostas às ameaças e situações ruins na vida.

Com o crescimento do neoliberalismo, diversas pesquisas científicas tiveram oportunidades em excesso para focar em situações ruins na vida ocasionadas pelo crescimento da desigualdade, aumento da pobreza, crise na habitação, aumento na insegurança alimentar, taxas crescentes de encarceramento, entre outras condições sociais degradadas.

A conclusão é que grande parte do sofrimento emocional humano tem como causa raiz não desequilíbrios químicos no cérebro ou em qualquer outro lugar do corpo, mas desequilíbrios de poder nas relações, organizações e instituições sociais. As chamadas “doenças mentais” são, em grande parte, criadas ou exacerbadas por desigualdade econômica (capitalismo), patriarcado, machismo e heteronormatividade (masculinidade hegemônica), racismo (supremacia branca), etnocentrismo e xenofobismo (nacionalismo, colonialismo, colonialidade e imperialismo), corporativismo, escravidão e outras formas de desumanização da diferença, nas quais existem relações de superioridade e inferioridade, opressor e oprimido, hegemonia, normatividade, representatividade e determinação ou governo de um pelo outro.

O modelo Poder, Ameaça e Significado – Power Threat Meaning Framework (PTMF) criado em 2018 pela Sociedade Britânica da Psicologia (venhamos e convenhamos, uma instituição não tão subversiva assim) reflete essa mudança com sua ênfase no papel que o poder operando negativamente (na forma relacional, ideológica, capital social, legal, coercitiva, corporal, econômica) tem em concretizar ameaças (o oposto do atendimento das necessidades humanas), que intermediados pelo significado que a pessoa dá para essas situações e experiências ameaçadoras geram respostas à essas ameaças, que podem ter sido a melhor solução que a pessoa tem ou teve, mas que também podem contribuir para o seu sofrimento. Um modelo de uma sociedade de psicologia não tão subversiva assim, mas que não tem um lugar para nenhuma psicopatologia interna fictícia. O Power Threat Meaning Framework foi criado explicitamente como uma forma de substituir o modelo biomédico e a “mentalidade DSM”.

Ao discutir o desequilíbrio de poder como origem do sofrimento emocional, o Power Threat Meaning usa o que chama de “padrão fundamental” (The Foundational Power Threat Meaning Pattern), uma síntese de inúmeras pesquisas científicas de muitas décadas:

  • Todas as formas de adversidade são mais comuns em contextos de desigualdade e outras formas de privação, discriminação, marginalização e injustiça social.
  • Os discursos sociais e significados ideológicos dão forma à experiência e expressão do sofrimento.
  • As relações de apego interrompidas muito cedo são uma forma de adversidade em si próprias, e preparam o cenário para respostas emocionais mediadas biologicamente às adversidades subsequentes.
  • Uma grande parte do impacto da adversidade pode ser explicada por fatores que agravam ou exacerbam a experiência de ameaça. Esses incluem o quanto mais precoce for a idade de desenvolvimento, sentir-se preso em uma armadilha, ameaça interpessoal e intencional, imprevisibilidade e falta de controle sobre a ameaça, ameaças repetidas e múltiplas, invasão física, ameaça crônica de fundo, e falta de alguém em quem confiar e agir como protetor.
  • Fatores de melhoria, como estágio posterior de desenvolvimento, ter alguém em quem confiar, ser capaz de escapar, são o oposto dos fatores agravantes.
The Foundational Power Threat Meaning Pattern

Ao invés de “diagnosticar” e “tratar” as pessoas (seguindo um modelo médico de funcionamento psicológico), o Power Threat Meaning Framework (PTMF) propõe que os terapeutas devem escutar as história que as pessoas nos contam (às vezes, ajudando elas através das perguntas que o modelo fornece). Ao nos contar suas histórias, elas narram o que aconteceu com elas, como isso afetou elas, que significado elas atribuíram para essas situações e experiências, como elas reagiram à essas ameaças, quais recursos elas têm disponível para resolver seus problemas e, finalmente, como elas encaixam tudo isso. O papel do terapeuta, ao invés de “tratar a pessoa”, é o de acompanhar, de escuta ativa e que se esforça para formar um relacionamento com o ser humano que está na sua frente.

Aos poucos, como resultados de cada vez mais pesquisas, diversos profissionais passam a questionar o papel político da psicoterapia.

Para além do mito da imparcialidade e neutralidade: o ativista clínico

Em 1978, James Holland escreveu um texto onde perguntava: “Behaviorismo: parte do problema ou da solução?”. Diversos profissionais responderam que não só o Behaviorismo, mas a psicologia como um todo estava sendo parte do problema. O problema que Holland estava falando era das sociedades estratificadas e hierarquizadas, com notórias desigualdades sociais.

Além do papel das pesquisas científicas, talvez mais importante ainda, existe o posicionamento político. Por muito tempo, os psicólogos fingiram poder adotar o mito do papel imparcial e neutro em suas práticas clínicas. Mas no que se refere à questões humanas, sociais e políticas, não existe imparcialidade ou neutralidade. Ou você está trabalhando a serviço da manutenção de um poder dominador ou a serviço da transformação social, da autonomia, solidariedade e de um poder autogestionário.

Bobbie Harro escreve que os sistemas de dominação e privilégio criam as funções de agentes e alvos. Agentes são aqueles que facilitam que as classes privilegiadas exerçam a dominação das classes oprimidas e dominadas (os alvos). O psicólogo clínico ou psicoterapeuta pode exercer a função de agente, reforçando o sistema de dominação, por não se envolver na reflexão crítica sobre seu papel de agente, se tornando cúmplice da opressão dos alvos. Harro, entre tantos outros, antes e depois, defende o papel oposto ao de agente, o de ativista clínico, que confronta o próprio lugar na teia de privilégios, adotando um posicionamento, questionando o status quo e iniciando uma transformação crítica que pode quebrar o sistema de dominação e começar um novo sistema que conduz à libertação para todas as pessoas.

O pessoal é político e o político é pessoal. A terapia pode ser uma experiência que aliena ainda mais ou que ajuda na emancipação e libertação. Ignacio Martín-Baró, psicólogo da libertação de El Salvador, tinha um “exercício” interessante de desafiar o discurso dominante que chamava de desideologização. Desideologizar envolve considerar a construção social do conhecimento, questionando como esse conhecimento foi adquirido, a quem ele beneficia, e se ele justificativa que as figuras na parte superior da hierarquia continuem dominando as figuras na parte inferior. Nesse caso, o modelo biomédico é extremamente conveniente para a ideologia neoliberal. Ele estigmatiza e culpa as próprias “vítimas”, as pessoas que estão sofrendo emocionalmente, omitindo o papel do ambiente social, privatizando até mesmo o sofrimento, construído predominantemente de forma social. O discurso de internalizar as causas do sofrimento emocional servem aos interesses da classe dominante no neoliberalismo, e os psicólogos clínicos e psiquiatras serviram aos interesses dessa classe, por manterem as causas ambientais dos problemas intocados, remediando os problemas somente depois de aparecerem, sem fazer nada para preveni-los.

O PTMF (Power Threat Meaning Framework) enfatiza a necessidade de se trazer questões de libertação, empoderamento, justiça social e equilíbrios de poder para dentro da terapia – além de escutar ativamente a história da pessoa. Outros modelos vão além disso, desfazendo a separação entre o pessoal e o profissional: se a pessoa é afetada pelo terapeuta, o terapeuta também é afetado pela pessoa e isso faz parte, necessariamente, de um relacionamento terapêutico autêntico. Esses modelos enfatizam que o terapeuta saia do seu papel confortável e privilegiado da clínica para desempenhar o papel de ativista clínico, lutando para mudar situações sociais injustas de desequilíbrio de poder.

Afinal de contas, se você se esforça para ter uma conexão verdadeiramente humana com a pessoa que está acompanhando, e ela relata uma situação de injustiça / opressão / dominação, que tipo de relação é essa, se você se esconde por trás de um papel profissional para não fazer nada a respeito? A imparcialidade (ou o “não fazer nada”) diante da dominação é uma forma de reforçá-la e de enfraquecer qualquer relacionamento verdadeiramente terapêutico.

Assim, esses novos modelos psicoterapêuticos que adotam o ativismo clínico (além de enfatizar a importância da conexão humana na relação terapêutica) surgem: a) como resistência à atual crise social, econômica e política causadas pelo neoliberalismo, com os efeitos do crescimento da desigualdade, aumento da pobreza, crise na habitação, aumento na insegurança alimentar, taxas crescentes de encarceramento, b) como resistência contra tradições dentro da própria psicologia que reforçam diversos tipos de desequilíbrios de poder (capitalismo, machismo, patriarcado, racismo, colonialidade, heteronormatividade etc.) e seus efeitos e, c) dando continuidade à partes da psicologia e de outras áreas fora do discurso dominante que já resistiam à opressão (como a Educação Popular de Paulo Freire, a Psicologia da Libertação de Martín-Baró, entre outras).

Da medicalização neoliberal para a sociabilidade e justiça social: implicações iniciais

Se o modelo biomédico é abandonado, isso tem diversas implicações para qualquer modelo psicoterapêutico. As premissas do modelo ecológico ou contextual são:

  • O cérebro está envolvido, mas não origina o comportamento ou sofrimento humano (não existem psicopatologias);
  • Situações ruins de vida e contextos históricos moldam o comportamento e sofrimento humano.

As implicações iniciais óbvias para a forma de se fazer terapia são:

  • Resolver a situação ruim da pessoa;
  • Descobrir o que aconteceu com a pessoa (“O que aconteceu com você?” ao invés do “O que tem de errado com você?”);
  • Existe a necessidade de se observar os contextos da pessoa sempre que possível e ouvir a pessoa falar sobre seu contexto, apenas pedindo mais detalhes;
  • Existe a necessidade de aumentar a consciência da pessoa em relação a si mesma, seu mundo e seus problemas (conscientização, autoconsciência ou consciência crítica).

Da mesma forma se o psicólogo se posiciona contra os desquilíbrios de poder, os objetivos da terapia não são mais conformar a pessoa à sociedade. As premissas por trás dos objetivos da terapia são:

  • A pessoa não é o problema ou não tem o problema;
  • A mudança vai acontecer quando a situação da pessoa mudar;
  • A pessoa precisa ser capaz de agir sob o mundo e ter efeitos (que não sejam necessariamente produtivos, em termos neoliberais, apenas relacionados ao trabalho remunerado);
  • A terapia passa a ter os objetivos que a pessoa tem, não mais eliminar sintomas.

As implicações iniciais óbvias para a forma de se fazer terapia são:

  • Consertar a situação da pessoa, seja de forma local (os fatores próximos) ou por meio da ação social (ativismo ou militância) para mudar a sociedade (os fatores distantes);
  • A necessidade de uma ênfase muito maior nos valores de libertação, empoderamento e justiça social;
  • Conversar sobre os objetivos e valores próprios da pessoa;
  • O terapeuta responder às ações da pessoa para mostrar que eles estão tendo efeitos sob o mundo;
  • O terapeuta trabalhar com a pessoa para ter efeitos em seu mundo.

Os modelos terapêuticos da saúde da libertação, a psicologia da libertação, a terapia feminista, a psicologia comunitária, o diálogo aberto, a escuta indígena, o CPR Emocional (Conexão, emPoderamento e Revitalização), entre tantas outras formas de se fazer psicoterapia incorporam tanto o abandono do modelo biomédico quanto o posicionamento pelo fim do desequilíbrio de poder, desconstruindo relações de dominação e opressão que ocorrem na experiência cotidiana e ajudando as pessoas, famílias e comunidades a se empoderarem e realizarem mudanças sociais.

Por suas premissas, esses modelos terapêuticos buscam muito mais por formas de se fazer uma conexão humana, de ter um relacionamento autêntico, onde o terapeuta ajuda a pessoa a ter experiências emocionais corretivas ou curadoras, justamente através do próprio relacionamento. Somos seres extremamente sociais, e se o sofrimento emocional surge das relações com com os outros, é somente nas relações com os outros que esse sofrimento pode ser curado. Ubuntu: “eu sou porque nós somos”; “uma pessoa é uma pessoa através de outras pessoas”.

De fato, há amplas evidências de que diferentes “marcas” de terapia tendem a produzir resultados amplamente semelhantes (Luborsky et al., 2002; Paley & Lawton, 2001), e isso porque a aliança terapêutica, baseada nas condições terapêuticas essenciais de empatia, calor e autenticidade, foi repetidamente identificada como os aspecto de mudança mais importante em qualquer abordagem de terapia. Por isso talvez o foco dos novos modelos mais em relacionamentos com suporte empírico (empirically supported relationships) do que em “tratamentos com suporte empírico”. Como afirma Crittenden, “terapias são cocriadas (…) as terapias não podem ser encaixotadas, protegidas por direitos autorais ou manualizadas antes que o paciente seja visto”.

Se esses modelos parecem “radicais”, é apenas porque o discurso e prática predominante da psicoterapia pararam no tempo, conservando o modelo biomédico de sofrimento emocional, causas internas fictícias, que supostamente legitimavam uma imparcialidade política e práticas que buscavam a legitimidade da medicina, com o efeito de reforçar as desigualdades de poder.

Todos esses modelos trabalham pelo direito das próprias pessoas, famílias e comunidades se autodeterminarem, ao invés de terem que assumir um papel “normal” estabelecido para manter o desequilíbrio de poder por aqueles que dominam e oprimem. Todos esses modelos terapêuticos trabalham a serviço da transformação social, da autonomia, solidariedade e de um poder autogestionário.

A relação terapêutica é cerca de 80%, 90% do trabalho terapêutico – o oceano – tanto em termos de tempo gasto na sessão quanto de esforço do terapeuta. O restante (processos, procedimentos, técnicas, protocolos) são pequenas ilhas – tarefas terapêuticas muito úteis – para serem usados conforme a necessidade da pessoa sendo atendida. Além disso, na própria relação terapêutica está inclusa o apoio à justiça social (libertação, empoderamento e consciência crítica como condições para a autonomia, solidariedade e autogestão) e a possibilidade de militância junto à pessoa para mudar as condições sociais que geram seu sofrimento.

Implicações não tão óbvias

Se o principal trabalho do psicoterapeuta é fazer uma conexão humana com a outra pessoa (a aliança terapêutica: empatia, calor e autenticidade) e ajudar a resolver a situação ruim na vida dela que está causando seu sofrimento (justiça social: consertar o poder operando negativamente sobre ela), isso tem implicações que me trazem uma série de dúvidas:

  • Partindo da premissa que terapia significa o tratamento de doenças após um diagnóstico, ao abandonarmos o modelo biomédico, assumimos que não existe doença mental ou psicopatologia. Ainda faz sentido chamar a atividade do psicólogo clínico de “terapia”? O psicólogo clínico não está realmente realizando o tratamento de nenhuma doença. Os novos modelos são críticos da postura de poder profissional e privilégio / especialização em tratar as pessoas. Profissionais da saúde da libertação falaram sobre o conceito de “acompanhar” as pessoas em sua jornada para a libertação, que diferente do conceito de “tratamento médico”, envolve muito mais ficar ao lado das pessoas e trabalhar com elas de forma colaborativa, talvez mais próximo de um “trabalho relacional“, necessariamente social, grupal ou comunitário – a depender do nível ecológico no qual o psicólogo está trabalhando.
  • Entendendo que o sofrimento e o comportamento humano ocorrem predominantemente em contextos sociais, ainda faz sentido o psicólogo clínico ficar na clínica?
  • A reforma psiquiátrica tirou os pacientes da internação compulsória em asilos e hospitais psiquiátricos. Uma reforma psicoterapêutica conseguiria tirar o psicólogo da clínica?
  • Ao entender que o sofrimento emocional é contextualizado, como viabilizar financeiramente a necessidade do psicólogo clínico ir a campo (no ambiente natural da pessoa)?
  • Ao promover os valores de libertação, empoderamento e justiça social, e entendendo que o grosso do trabalho é relacional, e que isso inclui também ajudar a consertar a situação ruim da vida da pessoa, como desconstruir a “separação” entre vida profissional e vida pessoal tão pregada pelos conselhos e órgãos profissionais?
  • Como o psicoterapeuta pode participar mais de uma abordagem epidemiológica de saúde pública (incidência, prevalência), trabalhando na prevenção de problemas de sofrimento emocional (promovendo fatores de proteção e reduzindo fatores de risco) ao invés de somente remediá-los?
  • Tomando como inspiração a psicologia comunitária, como o psicólogo clínico pode “distribuir psicologia” como forma de prevenção, mudança social, justiça social e empoderamento? Sem ser no formato de de livros / jornadas de autoajuda que apenas contribuem para transmitir a ideologia neoliberal de que o autoaprimoramento e autopromoção (sempre ações individuais e individualistas) são o único trabalho a ser feito, sem sequer tocar nas estruturas sociais?

Referências bibliográficas:

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  • Towards a socially just social work practice: the liberation health model (Jared Douglas Kant, 2015)
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  • Handbook for Analyzing the Social Strategies of Everyday Life (Bernard Guerin, 2004)
  • Handbook of Interventions for Changing People and Communities (Bernard Guerin, 2005)
  • Re-thinking mental health for indigenous Australian communities: communities as context for mental health (Bernard Guerin, 2012)
  • How to Rethink Psychology: New metaphors for understanding people and their behavior (Bernard Guerin, 2015)
  • How to Rethink Human Behavior: A Practical Guide to Social Contextual Analysis (Bernard Guerin, 2016)
  • To spark a social revolution behavior analysts must embrace community-based knowledge (Guilherme Bergo Leug & Bernard Guerin, 2016)
  • How to Rethink Mental Illness: The Human Contexts Behind the Labels (Bernard Guerin, 2017)
  • Turning Psychology into Social Contextual Analysis (Bernard Guerin, 2019)
  • The Use of Participatory and Non-Experimental Research Methods in Behavior Analysis (Bernard Guerin, 2019)
  • Therapy in the absence of psychopathology and neoliberalism (Bernard Guerin, Junho, 2021 – no prelo)
  • Revolution in Psychology: Alienation to Emancipation (Ian Parker, 2007)
  • The Origins of Unhappiness: A New Understanding of Personal Distress (David Smail, 1993)
  • Power, Responsibility and Freedom (David Smail, 2005)
  • The Inner Level: How More Equal Societies Reduce Stress, Restore Sanity and Improve Everyone’s Well-Being (Richard Wilkinson & Kate Pickett, 2019)
  • Introduction to Community Psychology: Becoming an Agent of Change (Leonard A. Jason, Olya Glantsman, Jack F. O’Brien & Kaitlyn N. Ramian, 2019)
  • Por uma práxis social comunitária em Análise do Comportamento (Cândido Rocha Flores Júnior & Lucas Ferraz Córdova, 2019)
  • Critica e Libertação na Psicologia: Estudos Psicossociais (Ignacio Martín-Baró, 2017)
  • Evidence-based practice: Accounting for the importance of the therapeutic relationship in UK National Health Service therapy provision (Paley & Laewton, 2001)
  • The dodo bird verdict is alive and well–mostly (Luborsky, Rosenthal, Diguer, Andrusyna, Berman, Levitt, Seligman & Krause, 2002)
  • Construção democrática, neoliberalismo e participação: os dilemas da confluência perversa (Evelina Dagnino, 2004)

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