O que é autogestão?

Autogestão tem pelo menos 2 significados, que embora não sejam tão diferentes entre si, falam sobre níveis diferentes:

  1. Autogestão individual: quando estamos falando de autogestão no nível do indivíduo, estamos falando acima de tudo, de autoliderança, de autogerenciamento, de autocontrole, de autodeterminação. Todos nós temos diferentes partes dentro de nós, diferentes “eus” (um “eu” que quer adotar comportamentos saudáveis, por exemplo, enquanto outro “eu” que quer meter o pé na jaca). A autogestão no nível individual se refere principalmente a controlar os fatores que influenciam o seu comportamento de modo que você alcance as suas necessidades, os seus melhores interesses, agindo como a pessoa que deseja ser. Não ser dominado por emoções, pensamentos ou diferentes partes suas (ou até mesmo outras pessoas) que são incoerentes com o tipo de pessoa que você deseja ser.
  2. Autogestão social: quando estamos falando de autogestão no nível social, estamos falando acima de tudo, de auto-organização social, de autodeterminação, de autogoverno, das pessoas afetadas por decisões participarem de forma direta nessas decisões sem que haja um especialista, representante ou autoridade que, presumivelmente, sabe o que é melhor para elas ou quais são suas necessidades. Se por um lado, temos um poder dominante, no qual algumas pessoas exercem a dominação (física, econômica ou ideológica) em outras, por outro lado, temos um poder autogestionário (a antítese da dominação). Nesse nível social, a autogestão abrange valores como a descentralização, a horizontalidade, a solidariedade, o apoio mútuo.

Uma ideologia autogestionária é um conjunto de valores sobre o exercício do poder de forma que seja oposto à dominação, hierarquia, opressão, exploração, hegemonia, supremacia, desumanização, desigualdade e representatividade. É um conjunto de valores sobre o exercício de poder emancipador, tanto no nível individual quanto no nível social. Como afirmou Bakunin: “A liberdade do outro estende a minha ao infinito.”

Concepções não muito úteis sobre autogestão

Na nossa cultura, existem algumas concepções sobre autogestão comportamental que não nos ajudam muito. Vamos ver algumas:

  1. A pessoa nasce ou não com autocontrole;
  2. O autocontrole ou autogestão é como um músculo que quando exercido demais, sofre fadiga.

A autogestão comportamental é uma habilidade que pode ser aprendida por qualquer um. Sim, alguns traços de personalidade podem facilitar ou dificultar o autocontrole, mas como qualquer habilidade, ela só se fortalece quando exercida, não é uma questão de inato x aprendida, mas sim de prática. E como qualquer habilidade, as pessoas se saem melhor com elas em algumas situações do que em outras.

Por falar em fortalecer, o modelo do autocontrole como força bruta (“vou resistir àquele chocolate com os meus poderes mentais”), embora tenha alguma base científica (realmente, as pessoas tendem a meter o pé na jaca depois de terem um dia exaustivo de trabalho no qual tiveram que exercer bastante autocontrole, por exemplo) é uma péssima estratégia para se autocontrolar. Esse modelo envolve esforços não planejados para resistir a tentação ou a dominação de impulsos, emoções e outras partes nossas ou dos outros. Você já deve ter ouvido falar sobre a alta reincidência de alcoólatras, entre outros problemas comportamentais, ou até mesmo tentado com sucesso curto essa abordagem: “Não vou pedir delivery hoje, já estou gastando demais… Hum, estou exausto do trabalho e recebi um cupom de desconto. Foda-se, vou pedir delivery!”. A força de vontade dura pouco e não funciona tão bem, né?

Como qualquer habilidade, a autogestão requer conhecimento e prática: saber o que fazer e, então praticar. O modelo de autogestão comportamental que trago aqui não é o de força de vontade, mas o de controlar os fatores que controlam seu comportamento através do esforço planejado deliberado para a mudança.

Quando o autocontrole é necessário?

Cada um vai saber melhor quando precisa se controlar melhor, mas de forma geral, a resposta é: quando você não está agindo de acordo com os seus melhores interesses, atendendo suas próprias necessidades, não está agindo como a pessoa que quer ser. O autocontrole é necessário então para:

  1. Quebrar hábitos prejudiciais (como a procrastinação, inação, impulsividade, passividade, compulsões, ficar na defensiva, fazer as coisas de qualquer jeito);
  2. Criar ou fortalecer hábitos que melhorem sua vida (ações coerentes com os seus valores, com o que importa pra você);
  3. Realizar atividades difíceis, mas necessárias para melhorar sua vida;
  4. Realizar atividades que vão te permitir alcançar objetivos que vão melhorar sua vida.

Ou seja, o autocontrole ou autogestão comportamental é necessária para diminuir atitudes problemáticas e aumentar atitudes que melhorem sua vida. Ela é necessária quando você tem consciência de atitudes que estão piorando sua vida, mas não consegue parar com elas, ou quando você tem consciência de atitudes que poderiam melhorar sua vida, mas não consegue colocar elas em prática.

Em uma metáfora utilizada por muitas terapias, imagine que a sua vida é um navio e você é o capitão desse navio: é sua responsabilidade escolher para onde o navio deve rumar, dentro dos limites possíveis. Agora, imagine que vários tripulantes – emoções como a ansiedade, a raiva, o medo, o desespero, pensamentos catastróficos, pessimistas, ruminativos, entre outras diversas partes, conjuntos de partes suas, ou mesmo, outras pessoas – queiram assumir o controle do navio e direcionar ele para onde você não quer, de forma que eles te dominem e você fique submisso a eles. Como capitão do navio, você deve assumir a autoliderança, o autocontrole, para não deixar que essas partes te dominem, te atrapalhem e piorem sua vida, levando o navio para outras direções.

Como começar

Qualquer boa psicoterapia faz 2 coisas:

  1. Ajuda o paciente a agir na direção dele construir uma vida melhor pra ele;
  2. Desenvolve as habilidades necessárias para que o paciente faça isso sem o psicoterapeuta.

Para isso, a gente precisa saber: o que você considera uma vida melhor? Quais são os seus valores, que tipo de pessoa você quer ser, o que quer defender em relação a si mesmo, aos outros e em relação a viver em comunidade? Quais são as atitudes nessa direção (progressos)? Quais são os excessos e déficits comportamentais na direção oposta? Quais são os fatores que influenciam os progressos na direção de uma vida melhor e os comportamentos problemáticos (excessos e/ou déficits) que te levam a piorar sua vida?

Ao longo do processo terapêutico, com a ajuda do terapeuta, o paciente vai aprendendo como se autocontrolar.

Pegando emprestado um pouco a filosofia estóica: concentre-se no que você pode controlar.

Não temos controle sobre as ações dos outros, sobre os nossos pensamentos, nossas emoções, impulsos, sentimentos, sensações, memórias e diversas outras experiências internas e externas. Mas temos controle sobre o nosso próprio comportamento.

Por isso, um bom psicoterapeuta vai tentar, desde o começo da psicoterapia, estabelecer objetivos comportamentais concretos, com perguntas como:

  • Se você fosse esse tipo de pessoa que deseja ser, o que você faria mais e o que você faria menos?
  • Imagine que aconteceu um milagre e você acordou sendo o tipo de pessoa que quer ser, agindo de acordo com os seus valores, vivendo em plenitude. O que nós veríamos você fazendo?

As primeiras coisas que você precisa saber e fazer então, para se autocontrolar, são:

  1. Especificar o comportamento desejado e o comportamento indesejado: quais atitudes vão te ajudar a construir uma vida melhor e quais atitudes vão te atrapalhar?
  2. Comece a monitorar esses comportamentos (em termos de frequência, intensidade e/ou duração), dando atenção especial pra quando eles ocorrem e quais são os efeitos deles.

Analisando e estabelecendo metas

Tendo começado a monitorar os comportamentos desejados, indesejados, assim como seus gatilhos e efeitos, você vai começar a observar alguns padrões aí. Nenhum comportamento ocorre no vácuo. É essencial olhar para o contexto no qual ele ocorre:

  • Quando é mais fácil você tomar atitudes na direção de construir uma vida melhor pra você?
  • Quais emoções, pensamentos e situações engatilham atitudes que só pioram sua vida?
  • Quais são os efeitos no curto e longo prazo das atitudes desejadas e das indesejadas?

É importante observar que, embora existam atitudes que você toma que só pioram sua vida, essas atitudes devem ter algum efeito benéfico no curto prazo, senão elas nem existiriam, não teriam surgido ou teriam deixado de ocorrer.

Você quer realmente mudar isso? Acredita que tem a capacidade para isso? Quais são as razões que você tem para mudar? Existe necessidade de mudança? Quais seriam os seus primeiros passos na direção da mudança?

Reflita: Se você continuar como está hoje (suas atitudes, hábitos, postura), onde você vai estar daqui 1 ano? Como a sua vida vai ser daqui 5 anos? Quais vão ser os efeitos do seu estilo de vida daqui 10 anos? Que tipo de pessoa você vai ser?

Quais são os prós x contras da mudança? Você está realmente decidido a mudar?

Além disso, ao fazer o monitoramento desses comportamentos, você já vai ter um parâmetro inicial, seja com a frequência, intensidade ou duração desses comportamentos. Esse parâmetro inicial vai ser usado para você comparar qualquer intervenção que você fizer, além de te dar uma base para estabelecer uma meta comportamental específica: o quanto você quer mudar? Em termos específicos, mensuráveis, alcançáveis, realistas e em quanto tempo?

Planejamento

Antes de falarmos de estratégias de autocontrole, vamos cobrir o que um bom plano de autocontrole deve ter. No livro Self-directed Behavior: Self-modification for Personal Adjustment, os autores David Watson e Roland G. Tharp recomendam os seguintes itens:

  1. Metas e sub-metas: torne as metas e sub-metas o mais explícitas possíveis, especificando exatamente o que você deve fazer, de forma que seja possível compará-las com o seu desempenho e saber com precisão se você atingiu ou não essas metas.
  2. Regras que estabelecem os tipos de comportamentos e técnicas de mudança para serem usadas em situações específicas: as regras são os meios que você implementa suas metas e sub-metas. Elas são declarações de pensamentos, comportamentos e técnicas de mudança que você usará em situações específicas para tornar mais prováveis os comportamentos desejados.
  3. Práticas, especialmente das partes desafiadoras do plano: é esperado que você pratique os comportamentos desejados novos continuamente, principalmente se eles substituírem um hábito antigo e indesejado. Se a situação não permitir a prática na vida real, use a prática em sua imaginação.
  4. Feedback sobre seu comportamento, com base no seu automonitoramento: qualquer plano efetivo deve incorporar um sistema de coleta de informações sobre seu progresso. Sem feedback, é provável que você não melhore – e, mesmo que melhorasse, não saberia disso.
  5. Uma comparação do feedback com suas sub-metas e metas de forma que você consiga medir o seu progresso: a próxima etapa em seu plano é comparar o feedback com sua sub-meta. Este processo de comparar o feedback às metas e sub-metas pode exigir um período curto e deliberado de avaliação.
  6. Ajustes no plano conforme as condições mudam, principalmente a criação de planos “se… então…”: claro, você pode precisar fazer mudanças no seu plano à medida que novas situações vão surgindo. Planos “se… então…” são planos que especificam possíveis situações e suas respostas para elas. Tente prever diversas situações e como você pode lidar com elas para alcançar suas metas e sub-metas.

Estratégias gerais

Vamos cobrir algumas estratégias gerais de autocontrole.
No livro The Science of Self-Control, Howard Rachlin afirma que qualquer problema de autocontrole é uma questão de ambivalência: tanto para a atitude desejada quanto para a indesejada, existem recompensas e conflitos de curto x longo prazo.

  • A ambivalência simples é quando há a mudança da preferência ao longo do tempo. Ao ir dormir, você quer acordar cedo para fazer suas coisas pessoais e coloca o despertador para 1 ou 2 horas antes de começar o trabalho; ao acordar, ainda com sono, você fica apertando o adiar / snooze do celular até o último momento.
  • A ambivalência complexa é quando a escolha do comportamento desejado é preferida do que diversas repetições do comportamento indesejado, mas ao mesmo tempo, o comportamento indesejado é preferido em relação a qualquer parte de duração do comportamento desejado. Preferimos emagrecer e para isso, precisamos fazer exercício, mas entre começar a se exercitar e ficar com a bunda no sofá assistindo série, na grande maioria das vezes, ficar com a bunda no sofá é mais recompensador no curto prazo do que começar a fazer exercício.
  1. Para a ambivalência simples, a melhor estratégia geral é restringir as escolhas, de forma que a opção indesejada não esteja disponível mais tarde. Às vezes, eliminar escolhas (ou associar custos à elas) nos torna mais livres.
  2. Para a ambivalência complexa, a melhor estratégia geral é a reestruturação: em termos simples, pense no panorama geral, olhe para uma perspectiva maior. Enquadre as 2 opções num longo período de tempo e incorporando o máximo de contexto possível. Qual é a melhor?
  3. Uma outra estratégia geral recomendada pelos autores David Watson e Roland G. Tharp no livro Self-directed Behavior: Self-modification for Personal Adjustment é o relaxamento. Os autores afirmam que muitas das falhas no autocontrole ocorrem quando as emoções (medo, raiva, ansiedade etc.) estão à flor da pele, então o relaxamento se torna uma habilidade alternativa super efetiva para esfriar e se comportar da forma com que você deseja.

Estratégias específicas para problemas específicos

Depois de analisar o monitoramento de comportamentos desejados e indesejados, você vai encontrar alguns padrões. As estratégias de autocontrole devem endereçar os problemas encontrados nesses padrões:

  • Se o problema for situações gatilhos, você pode adotar uma estratégia de 2 etapas: primeiro, evitar esse gatilho; depois, desenvolver novos comportamentos para lidar com esse gatilho. É preciso ter consciência que, quanto mais você adota a primeira parte dessa estratégia, mais o gatilho vai ganhar força sobre você, por isso, use essa primeira etapa com moderação ou só em situações de “emergência” (por exemplo: se você sabe que pode voltar a beber se for para um bar).
  • Se o problema for emoções ou pensamentos difíceis, você pode praticar atenção plena, observando essas experiências com curiosidade e sem julgamentos, enxergando elas como elas realmente são: experiências internas, não ordens, comandos ou a realidade. Uma outra opção é o relaxamento como falei na seção anterior.
  • Se o problema for a ausência total da atitude que você quer construir, comece aos poucos: quais são os primeiros passos que você pode dar? Como você pode começar pequeno e ir crescendo aos poucos? Existe alguém que pode te servir de modelo?
  • Se o problema for a falta de recompensas imediatas para a atitude desejada que você quer construir, use uma estratégia de 3 partes: tente trazer as recompensas atrasadas para o presente por meio de lembretes (post-its, notificações etc.); tente evitar gatilhos para reduzir os comportamentos indesejados; e, por último, tente trazer para mais perto novas recompensas poderosas para o comportamento desejado.
  • Se o problema for as recompensas imediatas para as atitudes indesejadas, a estratégia mais simples é fazer com que essas recompensas ocorram como efeito da atitude desejada ao invés da atitude indesejada.
  • Para muitas atitudes que são emitidas em público, você pode pedir, por algum tempo, para outras pessoas servirem de mediadoras de recompensas. Ou trabalhar em equipe / parceria para a mudança comportamental.

O papel da psicoterapia na autogestão

Como já falei antes, qualquer boa psicoterapia faz 2 coisas:

  1. Ajuda o paciente a agir na direção dele construir uma vida melhor pra ele;
  2. Desenvolve as habilidades necessárias para que o paciente faça isso sem o psicoterapeuta.

Sem o segundo item, essa não é uma boa psicoterapia. Desenvolver independência, autonomia, autocontrole e autogestão faz parte do trabalho terapêutico. Sem isso, o psicoterapeuta está reforçando uma relação de dependência do paciente para com o psicoterapeuta, uma relação paternalista do psicoterapeuta em relação ao paciente e, exercendo assim, o papel de especialista, representante ou autoridade – enfim, o de figura dominante ou superior ao invés de um igual.

Não é que a psicoterapia tenha que terminar o mais rápido possível. Mas os pais criam os filhos para o mundo. Os psicoterapeutas não criam os pacientes, só os ajudam a resolver seus problemas. Os 2 trabalham em parceria. Sem a participação de 1, o trabalho terapêutico não é possível:

  • o psicólogo clínico é o especialista em processos psicológicos de mudança, terapêuticos, de tratamentos com comprovação científica para os problemas do paciente, de desenvolver seu expertise;
  • o paciente é o especialista em sua própria experiência, necessidades, vida.

Conforme a vida do paciente vai progredindo e suas necessidades vão mudando, é claro que o terapeuta pode fazer parte da vida do paciente para ajudá-lo com novos e velhos problemas, mas nunca alimentar uma dependência.

Como psicólogo clínico, posso afirmar que, às vezes, é muito tentador a ideia de resolver o problema para o paciente, dizer o que ele deve fazer, cagar regras ou seus próprios valores e visão de mundo, bancando o papai ou a mamãe. Mas isso só reforçaria a incapacidade do paciente resolver o problema por ele mesmo, por isso, o psicólogo clínico também deve exercer o autocontrole para ajudar o paciente da melhor forma possível, fomentando a sua autonomia.

O que a autogestão comportamental tem a ver com a autogestão social?

Tornar-se pessoa, tornar-se um indivíduo diferenciado só ocorre no contexto social, de uma comunidade. Pessoas saudáveis mantêm um equilíbrio entre suas necessidades de autonomia e realização e de conexão social e pertencimento.

A pessoa que alcança a autogestão individual quer expandir essa autogestão socialmente.

Como espécie, o ser humano se destaca pelo poder da cooperação e da cultura. Somos incrivelmente maleáveis e a cultura explora (para o bem ou para o mal) essa plasticidade. Cabe a nós direcionar essa força tão potente, que pode impor um poder dominante ou catalisar um poder autogestionário.

Além disso, somos uma espécie incrivelmente social: a amizade, a gentileza, a bondade, a conexão e a união é o que nos completa.

Precisamos pensar além do nível individual e pensar no nível social: como podemos nos organizar para que possamos atender nossas necessidades sem que fiquemos mais à mercê do controle de especialistas, autoridades e representantes? Como podemos nos livrar da dominação física, econômica e ideológica que estamos submetidos atualmente?

A resposta é a autogestão.

O escopo tradicional da psicoterapia tende a focar no que Anthony Biglan chama de influências proximais (por exemplo, influências familiares, influências escolares e influências de pares). No entanto, sabemos que essas são, em grande parte, determinadas pelas influências ambientais distais (por exemplo, renda e recursos, coesão social e ambiente físico). São nesses últimos fatores que a autogestão social precisa focar.

“De cada qual, segundo sua capacidade; a cada qual, segundo suas necessidades” é a antítese do individualismo, consumismo e busca desenfreada por status causadas por políticas neoliberais. Assim como, no nível individual, para eliminar hábitos prejudiciais, devemos substituí-los por outros mais saudáveis, no nível da organização social, devemos enxergar que a narrativa hegemônica do neoliberalismo é somente isso: uma narrativa. Um outro mundo é possível. Um mundo onde caibam muitos mundos.

Efeitos da desigualdade

O micro (o psicológico) reflete o macro (a sociedade). Vamos focar no que sabemos cientificamente sobre alguns malefícios da desigualdade causada pela dominação:

  1. A desigualdade torna os problemas com gradientes sociais piores: diferenças maiores de renda aumentam a prevalência de quase todos os problemas mais comuns na parte inferior da escala social.
  2. A desigualdade afeta a mistura social: maiores diferenças de renda produz menos mobilidade social. As pessoas tendem a permanecer nas classes que nasceram porque desigualdades maiores aumentam ainda mais as barreiras de classe, a rigidez da hierarquia social e as diferenças de oportunidades.
  3. A desigualdade afeta a coesão social: os níveis de ansiedade por status aumentam. Ficamos mais preocupados com os julgamentos uns dos outros sobre nossa posição na sociedade e, como resultado, muitos acham o contato social cada vez mais estressante e constrangedor, tornando-se mais propensos à solidão. A vida em comunidade é enfraquecida e os níveis de confiança interpessoal diminuem – o estresse da insegurança de status faz com que as pessoas se retirem da vida social.
  4. A desigualdade aumenta as ansiedades sobre o status: à medida que as pessoas lutam contra sua própria falta de confiança e baixa autoestima, os transtornos de depressão e ansiedade aumentam. A desigualdade prejudica a interação social e nosso senso de nós mesmos em relação uns aos outros. Também há uma tendência das pessoas reagirem a uma ameaça de avaliação social elevada ostentando seus méritos e realizações em vez de serem modestos a respeito deles. Isso é mostrado claramente nos níveis elevados de autopromoção e de se avaliar como melhor do que os outros.
  5. A desigualdade aumenta o consumismo e o consumo conspícuo: como as pessoas tendem a usar o dinheiro para mostrar o seu valor, o aumento da ansiedade por status significa que o dinheiro se torna ainda mais importante em sociedades mais desiguais. O consumo conspícuo, que é, no final das contas, autopromoção por meios econômicos, aumenta.

Tendo entendido os efeitos prejudiciais da desigualdade e hierarquia, você pode falar:

“Tá bom. Esse papo de autogestão parece muito bacana no papel, mas isso é uma utopia. A natureza humana corrupta e egoísta nunca deixaria algo assim acontecer.”

Por trás de qualquer teoria ou prática política, existe uma concepção da natureza humana. Infelizmente, a concepção errônea de que o ser humano é egoísta, cruel, competitivo e corrupto é amplamente disseminada na nossa cultura e essa concepção é utilizada para justificar as piores atrocidades cometidas por diversos sistemas políticos.

Essa visão trágica da natureza humana foi sintetizada pelo filósofo Thomas Hobbes, quando ele afirmava que o homem em seu estado natural, vivia em uma guerra perpétua um contra o outro, que o homem era o lobo do homem. Segundo Hobbes, para acabar com o estado de guerra natural do homem, seria preciso um Leviatã, uma figura dominante, um governo ou estado forte que monopolizaria o uso da violência. As pessoas abririam mão da própria liberdade (e poder) em troca da segurança que essa figura dominante daria.

Não foram poucas as doutrinas filosóficas que chegaram nessa conclusão pessimista sobre a natureza humana. Desde o cristianismo com o conceito do pecado original, até figuras como Freud que falava sobre a pulsão de morte, e diversos economistas que veem a racionalidade como uma questão de maximizar ganhos pessoais.

Vou rebater essa concepção da natureza humana de 3 formas: primeiro, com um comentário sobre essa atitudes, sobre suas consequências e depois, falo um pouco sobre o que sabemos cientificamente sobre a natureza humana.

Essa visão trágica da natureza humana é o cinismo e o pessimismo falando. E sabe qual é o segredo do cinismo e do pessimismo? Eles são sinônimos de preguiça, uma desculpa para não assumir responsabilidades, apenas culparmos os outros. Essa preguiça segue a lógica da submissão: a visão da vida como algo passivo, a vida como algo externo que acontece com você, não como algo que você constrói ativamente.

Quais são as consequências de uma atitude assim?

Esse mito de que a natureza humana seria cruel ou pecaminosa e que se propagou por tanto tempo, por tantos lugares, por tantas ideologias e histórias é uma das ideias mais perniciosas que podemos ter.

Isso porque algumas coisas são verdadeiras porque são o que são: a água ferve na temperatura de 100 graus celsius, a água é composta por 2 moléculas de hidrogênio e 1 de oxigênio. A gravidade na Terra é de 9.807 m/s². Essas coisas são “descobertas”: a sua crença nelas não muda em nada o fato delas serem como são.

Outras verdades, no entanto, são “construídas”: elas se tornarem verdades dependem das suas crenças e de como você age em relação à elas. Se você acreditar que a diferença do outro é perigosa, isso te dá medo de ser atacado e pra se defender, surge o ódio, que justifica que você ataque ele. O outro te ataca pra se defender (do seu ataque) e, assim, justifica o seu medo e confirma a sua crença de que a diferença é perigosa. Consiste numa profecia autorrealizável: uma crença que provoca a sua própria realização.

A natureza humana é elástica a ponto de se enquadrar nesse último tipo de “verdade construída” ou profecia autorrealizável. Se acreditarmos que os humanos não são dignos de confiança, criaremos condições hierárquicas e dominadoras que os tornarão cruéis, o que reforçará a crença de que eles não são dignos de confiança e precisam de dominação. Indo para o outro lado, podemos ouvir Errico Malatesta: “Acreditamos que a maioria dos males que afligem os homens decorre da má organização social; e que os homens, por sua vontade e seu saber, podem fazê-los desaparecer.”

Como disse Noam Chomsky: “Se você assume que não existe esperança, então você garante que não haverá esperança. Se você assume que existe um instinto em direção à liberdade, então existem oportunidades de mudar as coisas.”

Vamos lá agora com uma perspectiva científica da coisa toda…

Durante cerca de 95% ou mais da existência do Homo Sapiens Sapiens aqui na Terra, nós vivemos em pequenas sociedades igualitárias que mantinham culturas extremamente autogestionárias ou contra-dominantes:

  • “As evidências antropológicas sugerem que a igualdade nas sociedades humanas primitivas era mantida pelo que tem sido chamado de ‘estratégias contra-dominância’: pessoas que se comportavam de forma dominadora eram colocadas em seu lugar sistematicamente sendo ignoradas, provocadas ou ostracizadas, enquanto as outras tentavam manter sua autonomia. (…)
    Antropólogos que estudaram sociedades de caçadores-coletores recentes e sobreviventes dizem que, em vez de apenas demonstrar a consciência de que se as pessoas agissem juntas, poderiam enfrentar qualquer indivíduo dominador, elas eram consciente e assertivamente igualitárias. Em vez de haver apenas uma ausência neutra de desigualdade, as pessoas nessas sociedades consideravam a igualdade um princípio moral.”
    – Kate Pickett e Richard G. Wilkinson (The Inner Level)
  • “Basicamente, nossos ancestrais eram alérgicos à desigualdade. As decisões eram assuntos de grupo que exigiam uma longa deliberação, em que todos podiam opinar. ‘Coletores nômades’, estabeleceu um antropólogo americano com base em formidáveis 339 estudos de campo, ‘são universalmente – e quase obsessivamente – preocupados em serem livres da autoridade dos outros.’” – Rutger Bregman (Humankind: A Hopeful History)

A antropologia e a história deixam bem claro que o estado em que a humanidade se encontra hoje é mais uma anomalia do que a norma. A dominação não é o nosso ambiente natural. Nesse momento, a humanidade é como um peixe fora da água. Nos resta saber por quanto tempo podemos viver assim.

“Tá bom. Esse papo de autogestão pode ter funcionado no passado. Mas não tem como funcionar hoje em dia.”

No dia a dia, você precisa que alguma autoridade te dê ordens sobre o que fazer com seus amigos, parceiro(a), pais, filhos, vizinhos e conhecidos?

O antropólogo David Graeber afirmou: [a autogestão] “nada mais é que o modo como agimos quando somos livres para fazer o que bem quisermos e quando lidamos com outras pessoas igualmente livres – e portanto cientes da responsabilidade para com os outros que isso implica. Isto leva a mais um ponto crucial: embora possamos ser razoáveis e gentis ao lidar com iguais, a natureza humana é tal que não se pode confiar nisso quando nos é dado poder sobre outros. Dê esse poder a um indivíduo, e este irá quase invariavelmente abusar dele de uma forma ou de outra.”

A maioria das formas de indecência e crueldade que parecem tornar a dominação necessária são, na verdade, os efeitos da própria dominação. Quando as autoridades, especialistas ou representantes tomam decisões pelas pessoas, é que os problemas começam. E depois, mais dominação é chamada para conter esses problemas, numa espécie de círculo vicioso que não acaba a não ser que nós o paremos. Os autores, ativistas e povos libertários ou autogestionários sempre reconheceram o perigo do poder dominante, centralizado, vertical. E proporam o exercício de um outro tipo de poder, o autogestionário: participativo, descentralizado, horizontal, igualitário.

“Como ampliar essa autogestão?”

A questão é não esperar por permissão de alguma autoridade, especialista ou representante. A questão é não esperar que algum poder superior organize sua vida e sua comunidade por você. A questão é nos auto-organizarmos, nos empoderando, ao invés de tirar o poder das nossas mãos.

“As pessoas sabem como viver suas próprias vidas e se organizar melhor do que qualquer especialista poderia saber.” – Peter Gelderloos

Confie. Espere pelo melhor e tenha coragem de organizar as condições para esse melhor. Ao mesmo tempo, tenha prudência contra a dominação.

Por que essa relação entre autogestão e psicoterapia vinda de um psicólogo clínico?

O político é pessoal e o pessoal é político. Não dá para fingir que os problemas, objetivos, valores e características do paciente não estão situados num contexto político.

B.F. Skinner, um dos psicólogos que mais contribuiu para a compreensão científica do comportamento humano, em sua biografia, afirma: “Eu acredito que eu tenha sido basicamente anárquico, anti-religião e anti-indústria e negócios. Em outras palavras, antiburocracia. Gostaria de ver as pessoas se comportarem bem sem ter que ter padres por perto, políticos por perto ou pessoas cobrando contas.”

“Eu acredito que eu tenha sido basicamente anárquico, anti-religião e anti-indústria e negócios. Em outras palavras, antiburocracia. Gostaria de ver as pessoas se comportarem bem sem ter que ter padres por perto, políticos por perto ou pessoas cobrando contas.”

Mostrei alguns determinantes culturais de doenças mentais. Sociedades mais desiguais têm uma incidência maior de ansiedade, depressão, narcisismo, entre outros problemas mais “graves”. Não basta tratar o problema depois que ele já aconteceu. Devemos prevenir que ele ocorra e, para isso, devemos organizar as condições sociais que geram esses problemas.

Além da questão da inspiração e de conhecimento científico, essa também é uma questão pessoal. Como diz Steven Hayes, “A dor e o propósito são os dois lados da mesma coisa. (..) Você sente dor onde você se importa, e você se importa onde você sente dor.”

Eu, como muitos dos meus pacientes, já sofri de ansiedade, depressão e sentimento de inferioridade. Me senti como sendo do “time C” por grande parte da minha vida. Esses males são exacerbados e/ou causados, em parte, pela desigualdade, dominação e práticas culturais tóxicas que elas desencadeiam (consumismo e busca desenfreada por status, por exemplo).

Olhando para trás agora como um adulto, com o conhecimento e a experiência que tenho como psicólogo, gostaria de evitar que mais pessoas tivessem que sentir essa mesma dor. Por isso, acredito que um dos meus propósitos seja o de promover uma cultura autogestionária, seja como psicólogo clínico, como marido, filho, amigo, colega ou em qualquer outro contexto que tenha oportunidade.

Deixo aqui algumas livros para quem quiser se aprofundar mais no tema:

Além disso, deem uma googlada por Exército Zapatista de Libertação Nacional, Chiapas, Rojava (Federação Democrática do Norte da Síria), Confederalismo Democrático, Quilombo Terra Livre, Teia dos Povos, que vocês verão que já existem diversos movimentos acontecendo nesse exato momento que estão realizando ou lutando pela autogestão.

Não é uma questão de sonhar uma utopia, é uma questão de se envolver na construção de um novo mundo.

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