Sobre ideologia e a busca incansável por métodos de trabalho mais eficientes, enxutos, ágeis, inovadores e que dão propósito e significado para a vida: fordismo ocidental x toyotismo japonês, startups, carreira como vida e o escravo (assalariado) feliz como sendo o melhor escravo — “quase um branco” por defender tanto os interesses da elite.

… a partir dos anos 1970 e 1980. (…)
 O maior desafio da reestruturação do capitalismo financeiro e flexível foi, como não podia deixar de ser, uma completa redefinição das relações entre o capital e o trabalho. Desde o seu início, a história da industrialização no Ocidente havia sido a epopeia de uma luta de classes cotidiana em todas as fábricas, um combate em todas as fábricas — e muitas vezes declarado e manifesto — entre a dominação do capital por meio de seus mecanismos de controle e disciplina, por um lado, e a rebelião dos trabalhadores contra sua opressão, por outro.
 Mesmo em pleno período de “compromisso de classes fordista”, fazia parte da tradição de luta dos trabalhadores se perceber como um soldado de uma “guerra de guerrilha” contra toda tentativa de controle e disciplina do trabalho julgada excessiva. A uma rotina de trabalho baseada na medição milimétrica de tempos de movimentos se contrapunha toda a criatividade dos trabalhadores em construir nichos secretos de autonomia. Durante os duzentos anos de hegemonia do capitalismo industrial no Ocidente — muito especialmente durante o “compromisso de classes fordista” -, a dominação do trabalho pelo capital significou sempre custos crescentes de controle e vigilância do trabalho. Nesse sentido, não é de modo algum surpreendente que a nova forma fabril que estava destinada a substituir o fordismo viesse, sintomaticamente de um país não ocidental, sem qualquer tradição importante de luta de classes e de movimento organizado dos trabalhadores no sentido ocidental do termo, o Japão.
 A grande vantagem do toyotismo japonês em relação ao fordismo ocidental era, precisamente, a possibilidade de obter ganhos incomparáveis de produtividade graças ao “patriotismo de fábrica”, que subordinava os trabalhadores aos objetivos da empresa. A chamada lean production (produção flexível) fundamentava-se precisamente na não necessidade de pessoal hierárquico para o controle e disciplina do trabalho, permitindo cortes substanciais dos custos de produção e possibilitando contar apenas com os trabalhadores diretamente produtivos. A secular luta de classes dentro da fábrica, que exigia gastos crescentes com controle, vigilância e repressão do trabalho, aumentando os custos de produção e diminuindo a produtividade, deveria ser substituída pela completa mobilização dos trabalhadores em favor do engrandecimento e maior lucro possível da empresa.
 O que está em jogo no capitalismo flexível é transformar a rebeldia secular da força de trabalho em completa obediência ou, mais ainda, em ativa mobilização total do exército de soldados do capital. O toyotismo pós-fordista permitia não apenas cortar gastos com controle e vigilância, mas, mais importante ainda, ganhar corações e mentes dos próprios trabalhadores. A adaptação ocidental do toyotismo implicou cortar gastos com controle e vigilância em favor de uma auto-organização “comunicativa” dos trabalhadores por meio de redes de fluxo interconectados e descentralizados. A nova semântica “expressiva” — o velho inimigo de 1968 agora “engolido” e redefinido “antropofagicamente” — serve para que os trabalhadores percebam a capitulação completa em relação aos interesses do capital como uma reapropriação do trabalho, sonho máximo do movimento operário ocidental nos últimos duzentos anos, pelos próprios trabalhadores.
 Na verdade, as demandas impostas ao novo trabalhador ocidental — quais sejam: expressar a si próprio e se comunicar — escondem o fato de que essa comunicação e expressão são completamente predeterminadas no conteúdo e na forma. Transformado em simples elo entre circuitos já constituídos de codificação e de descodificação, cujo sentido total lhe escapa, o trabalhador “flexível” aceita a colonização de todas as suas capacidades criativas em nome de uma “comunicação” que se realiza em todas as suas vicissitudes exteriores, excetuando-se sua característica principal de autonomia e espontaneidade.
 Como nota André Gorz, a verdade é que a caricatura do trabalho expressivo do capitalismo flexível só é possível porque não existe autonomia no mundo do trabalho se não existir também autonomia cultural, moral e política no ambiente social maior. Vimos anteriormente neste livro a ênfase de Habermas no vínculo entre as esferas privada e pública, uma retroalimentando a outra, para que qualquer processo de aprendizado durável seja possível. É preciso solapar as bases da ação militante, do debate livre e da cultura da dissidência para realizar sem peias a ditadura do capital sobre o trabalho vivo. As novas empresas da lean production no Ocidente preferem contratar mão de obra jovem, sem passado sindical, com cláusulas explícitas de quebra de contrato em caso de greve: em suma, o novo trabalhador deve ser desenraizado, sem identidade de classe e sem vínculos de pertencimento à sociedade maior. É esse trabalhador que vai poder ver na empresa o lugar de produção de identidade, de autoestima e de pertencimento.
 O novo espírito do capitalismo que se consolidou a partir dos anos de 1990 revelou-se uma caricatura perfeita do sonho iluminista e expressivista. Os novos gerentes, engenheiros e executivos se apropriaram nos seus próprios termos — ou seja, como sempre, os termos da acumulação infinita do capital — de palavras de ordem como criatividade, espontaneidade, liberdade, independência, inovação, ousadia, busca do novo etc. O que antes era utilizado como crítica do capitalismo tornou-se afirmação do mesmo, possibilitando a colonização da nova semântica a serviço da acumulação do capital. Temos aqui um perfeito exemplo da tese de Boltanski e Chiapello acerca das virtualidades antropofágicas do capitalismo em relação a seus inimigos.

Do livro “A elite do atraso: Da escravidão à Lava Jato” de Jessé de Souza

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A possibilidade de Coerção — e através dela a escravidão — pode representar uma ameaça menor para a democracia que a possibilidade do “escravo feliz”. A coerção é imediatamente reconhecida como tal pela pessoa coagida, enquanto o escravo feliz se sente contente a curto prazo, e pode vir a descobrir que está sendo explorado só muito tempo depois. Sentindo-se contentes, porque seu comportamento está sendo reforçado positivamente, os escravos felizes não tomam qualquer medida para corrigir a situação. Crianças que trabalhavam em fábricas, no século XIX, eram pagas com regularidade e frequentemente eram objetos de outros cuidados; e no geral estavam bastante satisfeitas. Só quando atingiam a meia idade se davam conta se é que o faziam, de que haviam sido enganadas. Qualquer medida que pudessem tomar a esta altura viria muito tarde para impedir os danos causados.

Do livro “Compreender o Behaviorismo” de William Baum.

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